quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Temor de Deus e medo da sexualidade

Procriar e perpetuar é uma questão mais sutil do que a puramente biológica e social

A sexualidade e a religião são duas das principais preocupações da humanidade. Freqüentemente inscritas em colunas opostas em que se arrolam respectivamente também o físico e o espiritual, o temporário e o eterno, parecem fixar territórios diferentes e bem determinados quando, no entanto, estão constantemente a interseccionar as respectivas fronteiras. A contraposição entre corpo e alma é bem antiga; aqui, contudo, neste ensaio, minha intenção é de aproximar os dois conceitos, pois acredito que ambos sejam locus tanto da religião quanto da sexualidade – como também da gênese dos medos que as circundam.
O percurso de um discurso inteligível para enfrentar a longa via de compreensão dessa dupla temática na cultura ocidental poderia iniciar-se em Sócrates, que caracteriza a alma como psique: a capacidade de entender e de querer do homem. Em seguida, Platão altera esse conceito e o repensa de modo profundo em termos ontológicos. Platão representa e apresenta o corpo como “túmulo” e “prisão” da alma; todavia, permanece convencido de que subsiste diferença insuperável entre corpo e alma, pois alma torna-se privada de sentido no momento em que é ligada a ele. Afirma que “o corpo enche-nos de amores, desejos, receios e toda a espécie de fantasias e grandes disparates; sua presença impede a alma de atingir a verdade”.
A doutrina cristã re-significou a questão dessa dicotomia de maneira ontológica, metafísica e teológica, pois apresentou o corpo não mais como um “peso” ou “tronco” para a alma, mas por ela sendo consagrado e até santificado. Mas, antes ainda, as antigas atitudes hebraicas em relação ao sexo eram naturalistas e religiosas no sentido de as aceitar como criações divinas. No Antigo Testamento, a vida sexual era celebrada, símbolo que sempre foi da atividade criadora divina em toda mística judaica, especialmente em páginas exclusivamente devotadas a esse tema na literatura sagrada, como o livro de Cantares.
Talvez as passagens mais afastadas desta sexualidade enquanto natureza criada do judaísmo e que mais desconfiguram o que naturalmente se conhecia da sexualidade – muito embora saibamos que os muitos interditos em Levítico (e outros) a rigor se impuseram na prática do cotidiano do judeu para a feitura de uma teologia mais orgânica no que se refere ao corpo – sejam as encontradas na concepção paulina (I Coríntios 7), segundo a qual estabelece-se a idéia de que a vida sexual é um empecilho, algo que atrapalha a vida devocional. Isso criou um ponto de vista absolutamente novo para a questão: abolindo-se a meta prioritária da vida sexual, a saber, a procriação, restava apenas que a vida sexual era uma espécie de mal necessário (porquanto distrativo da vida devocional) para evitar o pecado da fornicação. Colocando em termos simples: o melhor é servir a Deus exclusivamente; sexo é algo que ocupa as pessoas e as faz distrair-se da atividade santa; uma vida de privação sexual acaba sofrendo muita pressão que pode resultar em pecado.
Esse ponto de vista deu origem não apenas à lógica celibatária do movimento monástico, mas também ao ascetismo do desprezo ao corpo e sua subjugação não apenas através de rituais de mortificação como hábitos que durante muito tempo se conservaram de privar-se de banhos (“A pureza do corpo e das vestes significa a impureza da alma”, segundo santa Paula). Eram, pois, vistos como tão mais virtuosos aqueles que mais faziam seu corpo padecer de abandono e repressão.
A maneira como o puritanismo percorreu os séculos (do jansenismo ao vitorianismo, ao YMCA) alojado no seio das práticas das mais diversas orientações doutrinárias dá bem a noção do quanto essa idéia é forte, especialmente por ser tão física: a sujeição do corpo, afinal, parece a todos mais facilmente identificável do que o domínio sobre a mente, e, portanto, parece um caminho mais praticável. Vêem-se as marcas no corpo, sente-se a dor física: as provas da fidelidade, portanto, estão expostas aos olhos e perceptíveis pelos sentidos. Parece ao fiel uma maneira mais concreta de tentar convencer a si mesmo de que está fazendo a sua parte no combate ao pecado que o tenta.
Nesse quadro, o medo da sexualidade é, portanto, advindo do medo do pecado – inspirado pelo temor de Deus –, estando assim tão fortemente identificada a sexualidade com o pecado por conta de um preciso momento em que se dissociou da vida sexual a finalidade procriadora. O catolicismo sempre advogou que a finalidade do sexo é senão a procriadora, e nisso tudo não se pode dizer que não haja fundamentos. Mas a verdade é que esses fundamentos não esgotam a questão, pois o desejo de perpetuação, de procriação e, portanto, de imortalidade, são, sim, o fundamento do sexo. No entanto, o que se deseja procriar e perpetuar já é uma questão mais sutil do que a puramente biológica e social.
Pois a sexualidade não se deixa reduzir a um princípio. Seu reino é o da singularidade irrepetível; escapa continuamente à razão e constitui um domínio oscilante, regido pela exceção e pelo capricho. Essa dificuldade não a detém: se é incompreensível, não é imensurável; se não podemos defini-la, podemos descrevê-la. Procurávamos uma explicação, teremos uma geografia, onde se encontram corpo e alma, medos e temores. O corpo e a alma são ambos território do desejo (o desejo do corpo pelo além-de-si e a plenitude da vida física, o desejo da alma pelo além e a plenitude da vida espiritual) e também dos medos (o medo físico da dor e o temor espiritual da danação eterna).
Se é verdade que o equivocado temor de Deus num momento crucial do desenvolvimento do cristianismo reduziu o amor à descontinuidade dos seres que possuem uma alma, também é verdade que essa alma é a mesma sede do impulso da continuidade presente da mais alta expressão do amor: a sexualidade. Se estamos somente hoje a separar com nossos dedos tantas vezes ainda débeis quais foram os trigos e quais os joios que nesses férteis e quantas vezes indivisíveis territórios floresceram, podemos escolher se nos detemos a contabilizar essa seara ou se nos empenhamos em semear ainda mais do amor que venha a, indistintamente, frutificar para as gerações futuras.
Usina 21
Página publicada em: 3/9/2008
Gina Strozzi

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